O governo federal expulsou garimpeiros ilegais de dois territórios Munduruku no Pará, mas o envolvimento de alguns indígenas com a ilegalidade pode facilitar o retorno da atividade, alertam as lideranças.
Segundo líderes Munduruku, a falta de fontes de renda e serviços públicos torna a mineração ilegal cada vez mais atrativa para os indígenas jovens.
O governo prometeu oferecer alternativas econômicas às comunidades, mas por enquanto elas contam apenas com projetos isolados, como a criação de galinhas e a produção de farinha de mandioca.
Alguns líderes veem os créditos de carbono como uma boa alternativa de renda, enquanto outros denunciam contratos abusivos e violações à sua autonomia.
“Vamos continuar enxugando gelo”, disse Toya Manchineri, referindo-se ao esforço do governo federal para expulsar garimpeiros ilegais de dois territórios Munduruku no Pará. Se os órgãos públicos não se mantiverem presentes após a operação, “o governo vai colocar os garimpeiros para fora e eles vão voltar”, disse à Mongabay o coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), em entrevista por telefone.
Mas a falta de vigilância territorial não é o único atrativo para os garimpeiros. Segundo líderes indígenas, a precariedade da assistência de saúde e a falta de apoio econômico também criam solo fértil para atividades ilegais, tornando os indígenas dependentes da exploração de ouro.
Para afastar de vez as comunidades do garimpo, indígenas e ONGs buscam fontes alternativas de renda nas terras Munduruku. Os projetos em andamento focam na produção de farinha de mandioca, no fortalecimento do artesanato e na criação de galinhas caipiras, uma proteína alternativa aos peixes contaminados pelo mercúrio na região. Sem projetos que gerem renda para as famílias, “tudo vai continuar do mesmo jeito”, disse João Kaba, presidente da Associação Indígena Pusuru.
Desde o início do governo Lula, em janeiro de 2023, o governo federal realizou operações para a retirada de invasores em oito territórios indígenas localizados em quatro estados, incluindo as terras indígenas Yanomami em Roraima e Arariboia no Maranhão. O caso mais recente é o da Terra Indígena Kayapó, no Pará, cuja operação teve início na primeira semana de maio. Em vários casos, as operações responderam a uma decisão do Supremo Tribunal Federal que obrigou as autoridades a protegerem essas comunidades.
No caso do povo Munduruku, as ações se concentraram nas Terras Indígenas Sai-Cinza e Munduruku, que juntas formam uma área quase do tamanho de Alagoas onde vivem mais de 11 mil indígenas. Localizados nos municípios de Jacareacanga e Itaituba, conhecidos como o epicentro do ouro ilegal na Amazônia, esses territórios têm uma presença histórica de garimpeiros.
Quando a operação começou em novembro de 2024, as autoridades mapearam mais de 7 mil hectares de minas ilegais e 21 pistas de pouso clandestinas. Após a ofensiva policial, o número de minas ativas despencou para zero, de acordo com as autoridades. As ações das forças federais desencadearam prejuízos no valor de R$ 112,3 milhões aos garimpeiros, incluindo a aplicação de multas e apreensões e destruição de maquinário. O governo prometeu manter o patrulhamento e o monitoramento da região para evitar o retorno dos garimpeiros.

Líderes indígenas, no entanto, estão céticos quanto à eficácia dessas medidas, especialmente se não houver apoio dos órgãos públicos para oferecer novas fontes de renda às comunidades. “Os garimpeiros aliciam as lideranças em troca de combustível e cestas básicas”, disse Alessandra Korap, líder Munduruku e presidente da Associação Indígena Pariri. “O governo simplesmente tirou o garimpo, mas não trouxe comida, agricultura familiar, saúde, educação”, disse ela à Mongabay em entrevista durante o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, em Nova York.
Paulo Basta, pesquisador do principal centro federal de pesquisa em saúde do Brasil, a Fiocruz, afirma que é comum os garimpeiros presentearem lideranças com geradores de energia ou motores de barco, ou até mesmo fornecerem socorro durante emergências médicas. “Quando a mulher do cacique está doente, o garimpeiro faz o translado até o hospital da cidade para fazer o atendimento”, disse o médico, que coordena estudos sobre contaminação por mercúrio no território Munduruku há mais de 10 anos. “O garimpo vai beneficiando algumas lideranças em detrimento da comunidade que não quer o garimpo ali, e isso gera conflitos sociais”.

Segundo as lideranças, a longa convivência com os não-indígenas e a proximidade com os centros urbanos também criaram novas necessidades de consumo na população Munduruku, especialmente para os mais jovens. “Os indígenas caçam e pescam, mas eles precisam comprar outras coisas porque não vivem mais como antes”, disse Kaba à Mongabay por telefone. “Eles agora caçam com espingarda, não mais com flechas. Às vezes, eles também precisam comprar arroz, óleo de soja, anzóis, malhadeira e combustível para rodar o motor do barco”.
Seis associações indígenas destacaram as mesmas preocupações em uma carta pública divulgada em dezembro de 2024. Elas exigiram um plano pós-operação e investimentos para que as regiões “abandonem o garimpo e atividades predatórias, fortalecendo alternativas socioeconômicas”.
Segundo Nilton Tubino, líder da força-tarefa federal nas terras Munduruku, uma pequena minoria das comunidades está envolvida com a mineração ilegal. Às vezes, um líder indígena cobra uma taxa para permitir que garimpeiros explorem uma área; em outras situações, os indígenas servem como mão de obra, disse ele, acrescentando que são raros os casos em que os indígenas istram uma pequena mina de ouro.
“A mineração é um atrativo. Eles pegam um jovem [Munduruku] e pagam a ele R$ 4 mil, R$ 5 mil, R$ 6 mil por mês. Não tem outra atividade econômica que pague esse valor”, disse Tubino, destacando também “o o às coisas que os garimpeiros dão, como celulares, armas e bebida”.
Em comunicado à Mongabay, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse que o eixo central da desintrusão é “a garantia da continuidade do Estado nos territórios”. Segundo o ministério, a Terra Indígena Munduruku é um dos 15 territórios que receberão apoio para implantar projetos de gestão territorial e ambiental, “a fim de promover proteção territorial, soberania alimentar, geração de renda sustentável, fortalecimento institucional e preservação das culturas e tradições indígenas”.
A Terra Indígena Sai-Cinza, onde a operação também ocorreu, não faz parte do programa federal. O MPI não detalhou os projetos a serem desenvolvidos nem quando eles começarão a ser implementados. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não respondeu aos pedidos de informação da Mongabay.
As alternativas
Enquanto isso, organizações indígenas lutam para encontrar suas próprias soluções com o apoio da sociedade civil. As associações Pusuru e Pariri têm trabalhado para fortalecer a produção de farinha de mandioca vendida nos mercados da cidade.

“É um projeto no valor de R$ 45 mil para comprar equipamentos como um forno e um motorzinho para ralar a mandioca. Mas são mais de 180 aldeias e conseguimos doar só para 20 aldeias”, disse Kaba. “A gente precisa buscar mais projetos”.
Outra iniciativa é a criação de galinhas caipiras, que podem ser vendidas fora da comunidade e também servem como fonte alternativa de proteína na dieta dos indígenas. Estudos da Fiocruz mostraram que o mercúrio usado pelos garimpeiros contaminou os rios e os peixes consumidos pelo povo Munduruku; os testes mostraram níveis alarmantes da substância. “Estamos fazendo o trabalho do estado, perfurando poços, promovendo a criação de galinhas… porque a gente sabe que os peixes estão contaminados, e querem nos proibir de comer peixes”, disse Alessandra Korap.
A Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn também está buscando alternativas. O grupo produziu o documentário Awaydip Tip Imutaxipi (A Floresta Doente), que mostra os impactos da mineração ilegal no território. As mulheres também estão fortalecendo a Associação Poy, criada em 2022 para apoiar alternativas econômicas sustentáveis. Segundo a Wakoborũn, o grupo trabalha com a coleta e venda de óleo de copaíba, a venda de farinha de mandioca e o artesanato feito com sementes coletadas na floresta; parte dessas chamadas biojoias são vendidas em uma loja na cidade turística de Alter do Chão.
“A associação procura uma solução, como projetos de plantação, criação de galinhas e assim por diante”, disse Hidelmara Kirixi, uma das coordenadoras da Wakoborũn, em entrevista por video chamada. “Mas alguns parentes acabam sendo influenciados pelo garimpo por causa do dinheiro”.

O escritório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Drogas e Crime no Brasil e a Comissão Pastoral da Terra apoiam as associações indígenas com o Projeto Tapajós, criado em 2021 para prevenir que comunidades tradicionais trabalhem nos garimpos em condições análogas à escravidão. Segundo a ONU, o projeto beneficiou 190 famílias Munduruku com a implementação de aviários e casas de beneficiamento de farinha, ofereceu cursos de formação para a criação de associações voltadas para a bioeconomia e agrofloresta, além de ter apoiado a reestruturação de um centro de artesanato indígena na aldeia Praia do Índio, no centro de Itaituba.

As promessas dos créditos de carbono
O garimpo não é a única atividade que empurra os indígenas para perto de organizações criminosas que destroem suas florestas, afirmam as lideranças. Madeireiros ilegais, pecuaristas e grileiros também estão constantemente ameaçando as lideranças e invadindo territórios tradicionais na Amazônia, que virou foco do crime organizado.
“A grande maioria [dos indígenas] que se junta ao garimpo ou narcotráfico são jovens que precisam de apoio para comprar as coisas que eles querem. É muito fácil entrar nessa jogada quando te oferecem um recurso que parece muito fácil”, disse Manchineri, da Coiab. Segundo ele, a organização tem trabalhado para evitar esse tipo de recrutamento por meio do fortalecimento das associações indígenas locais e das identidades culturais e econômicas das comunidades. “O que a gente trabalha com as comunidades é que não é preciso inventar a roda. Se a comunidade trabalha com artesanato, por exemplo, então vamos fortalecer o que a comunidade já faz”.
Empresas de crédito de carbono também aumentaram o assédio aos indígenas nos últimos anos, oferecendo dinheiro para contratos de longo prazo. Em troca, obtêm o direito de vender os créditos gerados a partir daquela área de floresta. No entanto, o que poderia ser uma fonte de renda sustentável, em muitos casos tem se mostrado um negócio controverso. Contratos injustos e acordos assinados às pressas, sem consultar toda a comunidade, levaram a disputas em territórios como o Kayapó e o Alto Rio Guamá, no Pará, e Parintintin, no Amazonas.
“Os governos dos estados veem o crédito de carbono como se isso fosse resolver a situação dos territórios, mas não resolve”, disse Manchineri. “É um pequeno recurso, então tem que ter várias outras iniciativas para fortalecer as ações nos territórios indígenas”.

No Pará, o governador Helder Barbalho assinou um contrato de R$ 1 bilhão para vender créditos de carbono a uma coalizão internacional dos governos dos EUA, Reino Unido e Noruega. Barbalho prometeu compartilhar parte dos lucros com as comunidades tradicionais, mas o Ministério Público Federal no Pará ingressou com uma ação para cancelar o acordo, sob o argumento de que a lei brasileira proíbe a venda antecipada de créditos e que a fixação de um preço para os créditos em contrato “pressiona o processo de aprovação do sistema e gera assédio às comunidades afetadas”.
A questão divide os líderes Munduruku. Alessandra Korap, por exemplo, denunciou consistentemente as abordagens de empresas de crédito de carbono. Em 2024, ela foi uma das signatárias de uma carta repudiando o contrato do governo do Pará: “é inaceitável que o governo do estado do Pará tome decisões sem consultar as comunidades tradicionais, que são as maiores protetoras das florestas”.
Outros líderes, no entanto, veem os créditos de carbono como uma alternativa econômica promissora. “Mais da metade dos caciques das aldeias se interessaram pelo projeto do estado do Pará”, disse Kaba, referindo-se às 180 aldeias da Associação Pusuru. “Vivemos na floresta, e os satélites mostram que a floresta está bem protegida. Mas os satélites não veem as pessoas que estão lá na floresta. E, muitas vezes, não sabem como essas pessoas estão, do que precisam, se estão comendo bem, se têm alguma renda”.
Reportagem adicional de Latoya Abulu.
Imagem do banner: A proximidade com a cultura não-Indígena e a falta de alternativas econômicas fazem com que alguns jovens Mundurukus recorram ao garimpo ilegal. Imagem © Júlia Mente/Greenpeace.
Fernanda Wenzel é repórter investigativa baseada em Porto Alegre. Ex-bolsista do Pulitzer Center, ela cobre temas como grilagem de terras na Amazônia, cadeia da pecuária na Amazônia, garimpo de ouro e violações aos direitos de indígenas e quilombolas. As matérias de Wenzel foram publicadas por veículos brasileiros e internacionais como CNN, BBC, The Guardian, Folha de São Paulo e Intercept Brasil. Encontre-a no Instagram<, 𝕏 e Bluesky.
Karla Mendes é repórter investigativa da Mongabay no Brasil e é membro do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center. Ela é a primeira brasileira e latinoamericana eleita para a diretoria da Society of Environmental Journalists (SEJ), dos Estados Unidos, onde ela também foi eleita Vice-Presidenta de Diversidade, Equidade e Inclusão. Leia outras matérias publicadas por ela na Mongabay aqui. Encontre-a no Instagram, LinkedIn, Threads, 𝕏 e Bluesky.