Pedidos de exploração mineral no mar do Brasil tiveram um salto nos últimos anos: dos 950 requerimentos solicitados registrados desde 1967, quase metade ocorreu entre 2020 e 2024; demanda de minerais estratégicos para a transição energética impulsiona a corrida ao oceano.
Brechas nas normas brasileiras, porém, estão permitindo que mineradoras explorem sem licenciamento ambiental, fato agravado pela ausência de regras específicas para a mineração marinha.
Pesquisadores alertam para a falta de estudos sobre os impactos ambientais da exploração no fundo marinho; a biodiversidade dos recifes é a que estaria sujeita aos maiores riscos.
A exploração mineral no fundo do mar tem avançado em todo o mundo nos últimos anos, enquanto as deliberações da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA) não chegam a um consenso e empresas buscam brechas para iniciar os seus projetos.
No caso do Brasil, levantamento realizado pelo Observatório da Mineração, parceiro da Mongabay, observou um aumento exponencial nos pedidos para exploração de minerais no mar brasileiro. Dos 950 requerimentos registrados na Agência Nacional de Mineração (ANM) desde 1967, 456 foram protocolados de 2020 até o fim de 2024, concentrados principalmente nos litorais do Maranhão, Bahia e Espírito Santo.
Esse boom do interesse mineral no mar é explicado pela conjuntura econômica, pela aceleração da transição energética e pela busca por minerais estratégicos para energias renováveis, agora usados como argumento para justificar a exploração em áreas sensíveis e sem estudos suficientes sobre o impacto da atividade, como é o fundo do mar.
As principais substâncias pesquisadas na costa brasileira são fosfato e sais de potássio, seguidos por três tipos de calcário e conchas calcárias, todos com potencial de uso na indústria de fertilizantes. A Lithothamnium, uma alga marinha calcificada e conhecida como alga-vermelha, encontrada em águas profundas na costa brasileira, é a substância mais citada nos pedidos de licenciamento ambiental.
O Brasil busca reduzir a dependência da importação desses insumos, e o governo de Jair Bolsonaro atuou em várias frentes para aumentar a exploração de fertilizantes no país, política seguida pelo atual governo Lula.
Minerais críticos e estratégicos como a ilmenita, o titânio e o lítio também aparecem na lista de interesse do governo brasileiro, assim como o sal-gema, substância que está por trás do desastre da Braskem em Maceió, Alagoas, na costa oceânica nordestina, considerado um dos maiores desastres em curso da mineração mundial.
Paulo Sumida, diretor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), afirma que o aumento no número de requerimentos na ANM está relacionado à busca no mar de minerais críticos, acelerada por uma corrida do mundo para tentar zerar as emissões de carbono em médio prazo.
“A situação geopolítica não ajuda, com frequentes embates entre China e EUA por supremacia na área. Isso faz com que o o a esses minerais represente vantagens econômicas enormes. Isso também está refletindo no nosso país, que possui uma extensa costa e grande potencial para exploração desses recursos”, afirma.
A preocupação ambiental de Sumida está concentrada na perda da biodiversidade marinha. Segundo o pesquisador, áreas profundas são extremamente biodiversas e com ritmos muito diferentes daqueles que encontramos em águas rasas e, por isso, há necessidade de um manejo especial nessas áreas.
“O alerta dos cientistas quanto ao perigo de tal exploração pode significar uma pressão para uma moratória na exploração. De fato, queremos explorar uma área enorme sem ao menos saber qual será o real impacto que isso terá globalmente. Hoje vivemos três principais crises planetárias: a crise climática, a de biodiversidade e a de poluição. Não podemos tratar uma sem endereçar as outras. A perda de biodiversidade é uma questão séria e que pode causar um colapso ecossistêmico sem precedentes na história da humanidade”, acredita.
Assim como a exploração em terra, a mineração no mar está cercada de perigos ambientais. André Klumb, professor do Departamento de Geologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que nos depósitos brasileiros, a extração se dá por meio de dragagem e raspagem do fundo oceânico.
“Os impactos ambientais relacionados a pesquisas e explotação de recursos no assoalho oceânico, através de dragagem do fundo marinho, geraria uma pluma de sedimentação capaz de percorrer distâncias muito longas a depender da densidade do material em suspensão. Com as correntes marinhas, isso eventualmente cobriria a superfície de algas e corais, situados a quilômetros dos sites minerados, além de afetar diretamente a existência de espécies que vivem nos sedimentos de fundo marinho”, alerta Klumb.

Brecha na legislação
No caso brasileiro, o levantamento do Observatório da Mineração identificou que diversas empresas estão sendo beneficiadas com autorizações para extração de substâncias marinhas sem licenciamento ambiental.
Isso acontece com o uso do mecanismo conhecido como “guia de utilização”, que deveria ser de caráter excepcional, mas foi banalizado e concedido a milhares de empresas nos últimos anos pela Agência Nacional de Mineração.
A autorização ou a exigir apresentação do licenciamento ambiental apenas após a concessão da guia, no prazo de 10 dias. O que muitas empresas fazem, com essa brecha, é não apresentar o licenciamento.
Como a fiscalização da ANM é extremamente falha, empresas conseguem explorar sem obter o licenciamento ambiental junto ao Ibama, órgão responsável pelo processo, e muitas vezes ultraando os limites de produção permitidos pela guia.
Essa extração sem o aval ambiental foi uma brecha aberta pela ANM, e não revogada até ser questionada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em julho de 2024, o TCU considerou ilegal a concessão de guias de utilização e determinou, em outras coisas, que a concessão das guias volte a exigir previamente a apresentação do licenciamento ambiental.
O prazo venceu em janeiro de 2025 e, mesmo após esse prazo, a questão não foi resolvida na ANM. Pelo menos um pedido de extração no mar recebeu parecer favorável da agência mesmo sem o licenciamento estar concluído e sem estudo de impacto na área requerida.
A investigação do TCU também mostra que a Diretoria Colegiada da ANM foi responsável por suprimir, em junho de 2020, o arcabouço legal que exigia o licenciamento, medida aprovada por unanimidade em apenas 21 dias. Um dos resultados desta ação da agência, segundo o relatório da auditoria, foram quase 90 casos de exploração sem controle em uma amostra que vai apenas até outubro de 2023.
Na ANM, a guia é utilizada para liberar a extração de determinadas substâncias antes da outorga de concessão de lavra. A lista de substâncias permitidas por este mecanismo é longa e inclui desde conchas calcárias até minério de ferro, cobre, diamante, níquel e ouro, variando as quantidades permitidas.
ANM e Ibama, órgãos federais que deveriam controlar e fiscalizar o mercado, responsáveis por autorizações, checagens e licenciamento ambiental, estão sucateados, com orçamento insuficiente, falta de pessoal e ainda tentando se reerguer após o desmonte feito durante o governo de Jair Bolsonaro.

Mesmo prevendo a exigência de “respeitar a legislação ambiental vigente” e entregar um relatório anual de lavra, o TCU atestou que a supressão da obrigatoriedade de apresentação prévia do licenciamento ambiental gerou essa zona cinzenta que acaba favorecendo as empresas.
Para Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, a guia de utilização deveria ser aplicada em situações previstas no regulamento, como análises de viabilidade ou testes, não para ignorar o licenciamento ambiental.
“Ela gera a dispensa temporária da outorga da concessão de lavra, não do licenciamento ambiental. Se a atividade for em escala insignificante ou de pequena escala, pode ser afastado o licenciamento ambiental ou aplicado processo simplificado”, afirma.
Para Araújo, “usar a guia para eliminar o licenciamento perante os órgãos do Sisnama (Sistema Nacional do Meio Ambiente) é inissível e, na minha opinião, pode gerar inclusive aplicação de sanções penais, com base na Lei de Crimes Ambientais. Isso também vale para minerações offshore”, avalia.
Mineração de algas vivas
Analisando os dados do Ibama sobre o licenciamento ambiental das empresas que exploram ou pretendem explorar no mar brasileiro, Luigi Jovane, professor associado do Departamento de Oceanografia Física, Química e Geológica do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP), faz outros alertas sobre lacunas nos processos, além da falta de estudos científicos.
O primeiro deles é que várias licenças classificadas de operação são na verdade de “operação para lavra experimental”. O pesquisador afirma que mineradoras estão extraindo “há muitos anos desta forma”, especialmente na Bahia e no Espírito Santo. E aponta possíveis violações nos processos sobre as declarações sobre o material lavrado.
“As empresas podem comercializar o material na fase de teste e, portanto, é vantajoso fazer este tipo de licença. Outro ponto é a descrição do material lavrado. Eles chamam de Lithothamnium porque com este termo se representam as algas mortas, mas, na verdade, na maioria das vezes o que é lavrado são algas-vermelhas vivas e rodolitos, que são o substrato dos recifes de corais no Oceano Atlântico. É quase impossível diferenciar o Lithothamnium das algas-vermelhas [vivas] e dos rodolitos. São diferenças biológicas e mineralógicas mínimas”, afirma Jovane.
Segundo o especialista, esse material biológico pode ajudar a reduzir os efeitos das mudanças climáticas. “Além de ter uma grande importância para a biodiversidade, algas-vermelhas vivas e rodolitos estão entre os maiores sequestradores de CO2 no mar. E tem uma função reguladora da temperatura e do pH do mar em tudo. Portanto, a retirada destes materiais pode influir no equilíbrio marinho e nas mudanças climáticas. Mas isso precisa de muitos mais estudos”, avalia Jovane.
Já o Ibama afirma que não há autorização para a extração de algas-vermelhas. Se empresas usam esse expediente, estariam indo além do permitido, causando impactos.
“Grande parte dos processos relacionados se refere à extração de Lithothamnium, não havendo autorização de extração de algas-vermelhas, rodolitos ou substâncias associadas a corais. Para entender a dinâmica da área [que é] objeto da atividade de extração, é solicitado o diagnóstico, de forma a se evitar que haja impactos ou danos à biota”, respondeu o Ibama à reportagem.

Falta de estudos científicos
Não existem normas ou leis específicas para o setor na área ambiental, e o licenciamento tem como base apenas uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) de 1997.
A norma não trata especificamente de extração mineral no mar, mas atribui ao Ibama, no seu artigo 4º, a responsabilidade por liberar empreendimentos e atividades com “significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, localizadas ou desenvolvidas”, também “no mar territorial; plataforma continental; na zona econômica exclusiva”.
Por parte da ANM, não há regra diferente da concessão de mineração em terra e as referências são o “Código de Mineração, sua regulamentação e legislações órias ao código”, que inclui o uso das guias, informou a agência. O Código de Mineração do Brasil é de 1967.
“A legislação não é forte. Porque a legislação da mineração se baseia no que acontece no continente. No mar, não existe, de verdade, uma legislação pronta que consiga responder a algumas características”, pondera Jovane. Segundo o pesquisador, as empresas não querem que as informações sejam divulgadas. “Tem um vácuo de conhecimento gigantesco que precisa ser resolvido.”
Para Suely Araújo, o Ibama não precisa de regramentos específicos “e analisa processo a processo”. Em resposta à reportagem, o órgão reforçou que “não há normativa específica sobre o tema”. De acordo com o Ibama, “o licenciamento ambiental de atividades de mineração marítima observa a legislação ambiental, inclusive a relativa à mineração continental” e afirmou estar em “contínuo aprimoramento em todos os procedimentos a partir da experiência acumulada em licenciamentos anteriores”.
Luigi Jovane lembra que a proteção de áreas marinhas ainda é frágil no Brasil e não se exige mitigação das empresas que querem explorar o fundo do mar.
“Precisamos fazer mais estudos sobre o impacto que a retirada desse material do fundo e a reposição de outros materiais em outras áreas possa criar”, avalia. Para o pesquisador, se o Brasil ar a ter muita atividade de mineração no oceano, podem ser formados “agentes cumulativos e os impactos podem ser gigantescos”. “O risco aumenta em forma exponencial também. E tudo isso tem que ser estudado. Não existem muitos estudos científicos, são pouquíssimos”, completa.
Alex Bastos, professor do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), faz análise parecida. “Quando se fala de ambiente marinho, um dos principais riscos é não ter um bom estudo usando o que há de mais moderno para minimizar os riscos e avaliar ações mitigadoras, uma vez que o fundo dos oceanos é ainda pouco conhecido”, diz Bastos.
O pesquisador da UFES afirma que o conhecimento sobre os processos ecossistêmicos e a biodiversidade em mar profundo, abaixo de 200 metros, ainda é pequeno e que “é preciso ter todas os dados na mesa para que se possa tomar decisões com base na ciência”.
De acordo com Bastos, que é PhD em Geologia e Geofísica Marinha pela Universidade de Southampton, na Inglaterra, outra questão que agrava o cenário brasileiro são os ataques políticos que órgãos como o Ibama sofrem, o que afeta a capacidade de cumprir devidamente o seu papel, como no caso do licenciamento ambiental.
“Com o desmonte que foi feito e o assédio que ocorreu no governo anterior [de Bolsonaro], você pode ter a melhor legislação, mas se o órgão for fragilizado politicamente, não adianta. Hoje está melhorando, existem ações de capacitação, mas isso precisa ser constante”, lembra.
Para Bastos, a definição de áreas de exploração e áreas protegidas é papel do planejamento espacial marinho, que começou há pouco tempo no Brasil. “Criar um zoneamento do fundo dos oceanos, de forma responsável e equilibrada, é a única forma de buscar a sustentabilidade”, acredita.
Imagem do banner: Exemplo de equipamento usado para exploração mineral em alto mar. Foto: Richard Baron/The Metals Company